sexta-feira, 3 de abril de 2020

"O quereres" e o desejo na Psicanálise


“O QUERERES”
O desejo e a falta através da canção




“Eu queria querer-te amar o amor
Construir-nos dulcíssima prisão
Encontrar a mais justa adequação
Tudo métrica e rima e nunca dor
Mas a vida é real e de viés
E vê só que cilada o amor me armou
Eu te quero (e não queres) como sou
Não te quero (e não queres) como és



Retorno a este trabalho que desenvolvi no decorrer de minha especialização, onde lanço mão de uma das minhas canções favoritas, enquanto instrumento para expressar através da arte, o conceito do desejo para a psicanálise.

Esta canção, que foi escrita em 1984 por Caetano, utiliza da antítese como sua principal característica. Onde quer um, sou outro, quando sou, não o queres. Apontando para a impossibilidade da plena satisfação, na lacuna entre o sujeito e o outro, fadado a deparar-se com sua incompletude e com a daquele que na canção o deseja.

O sujeito, sempre dividido, por ser sujeito, para ser um sujeito.

Luciano Elia, em O Conceito de Sujeito, menciona a canção, dizendo que: “traduz magnificamente a concepção psicanalítica do desejo, que impede “a mais justa adequação, tudo métrica, rima e nunca dor””.

Ressaltando que o $ não nasce ou se desenvolve, mas se constitui, já que para tornar-se humano, precisa alienar-se ao Outro, enquanto ser pulsional e não do instinto. E seria então, neste encontro que um outro ocupa lugar do Outro, “o tesouro dos significantes”. É neste encontro com a linguagem que o pretendente a sujeito se depara com a sua primeira e fundamental divisão, a da linguagem. E para tornar-se sujeito, precisa perder, pois na luta entre a morte e a vida, “a bolsa ou a vida”, o ser e o sentido, escolhe o sentido e perde o ser.

Retornando ao desejo, volto-me a outro momento: a separação, que aponta que o Outro também é faltante. Este Outro que advém de um outro, que vem a ocupar este lugar. E é diante deste Outro barrado que se revela a perda do objeto.

"A separação supõe uma vontade de sair, uma vontade de saber o que se é para além daquilo que o Outro possa dizer, para além daquilo inscrito no Outro” (Soler, 1997, p. 65).

É a partir da separação que possibilita uma diferenciação entre o sujeito inconsciente e o Eu.
Já que o objeto falta, o sujeito pode tornar-se desejante – logo: o desejo só existe na falta. Saciado, permaneceria inerte, sem movimento, sem demanda. É então diante da falta do objeto que se constroem as vias da fantasia.

O desejo sempre nasce da frustração na sua relação na busca com uma primeira satisfação que não será revivida, estabelecendo então um jogo de demanda entre desejo e falta. Lembrando o matema da fantasia de Lacan: $<>a.

Quinet, quando trabalha “o desejo do Outro”, ressalta o aforismo de Lacan: o desejo do homem é desejo do Outro, retomando as teses Heglianas onde “ a palavra é o assassinato da coisa”, sendo assim, para que o desejo se constitua, ele precisa incidir sobre outro desejo. Sendo o desejo humano: desejo de desejo. Na busca de que seu desejo seja reconhecido pelo Outro, como se fosse seu. E é nesta relação que surge o “Che vuoi?”- “O que queres? O que queres de mim?”.

Freud nos ensina um desejo sempre conflituoso, por suas origens infantis e objetos proibidos, provocando assim a angústia. E é na busca por um objeto que cumpra esta missão, de completar uma lacuna deixada, que o sujeito caminha. Numa saga onde não se diz tudo, não há um todo, pura reciprocidade, um só. E a canção nos lembra do que há de árduo no desejo – a falta.

Ah! Bruta flor do querer
Ah! Bruta flor, bruta flor...



SOUZA, Vanuza A. Barcellos. 2020.

Referências


QUINET, A. (1991). As 4+1 Condições da Análise. Rio de Janeiro: Zahar.
QUINET, A. (2000). A descoberta do Inconsciente. Rio de Janeiro: Zahar.
PISETTA, Maria Angélica Mello; BESSET, Vera Lopes. Psicologia em Estudo, Maringá,  v.  16,  n. 2, p. 317-324, abr./jun. 2011
FREUD, S. (1914-1916). Introdução ao Narcisismo, ensaios de Metapsicologia e Outros Textos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
________. Além do princípio de prazer [1920-1922]. In: Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
________. (1915) Os Instintos (as pulsões) e seus Destinos.

________. (1915) O Inconsciente.
FERNANDES, Nohad Mouhanna. (2006). Análise linguístico-discursiva da canção “O quereres”, de Caetano Veloso. v. 2, n. 4 – jan./jun.
LACAN, J. Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise. In. O Seminário, livro 11. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1988(1964).

Nenhum comentário:

Postar um comentário