quarta-feira, 8 de abril de 2020

Ruptura - o isolamento social e uma possível consequência


Antes de iniciar produzindo algo que se refira a qualquer tipo de “consequência positiva” num isolamento social, preciso me localizar no meu discurso.

E é imprescindível um discurso político. Político, suscitando a politeía, do antigo Grego que indicava todos os procedimentos "relativos a Pólis – a sociedade, comunidade... Como em A República: “O homem é, naturalmente um animal político” - Aristóteles.
A concepção aristotélica traz o sujeito enquanto político desde a sua relação parental, onde o “pátrio poder” se exerce sobre os filhos e assim por diante nos outros contatos no mundo.

O sujeito para ser alguém, para ser um, precisa enfrentar suas perdas, e as perdas são por muitas vezes consequências da lei. Ou seja, há um outro, um Outro.

Retornando ao isolamento e a necessidade de uma fala que pontue não apenas uma questão, mas que se destaque de outras para que possa se validar, preciso separar as mazelas deste período.


Enquanto digitava este parágrafo, me ocorreu um pensamento: é justamente por esta diferença que a fenda que quero chegar, se faz possível. Enfim, continuemos.

Enquanto uma parcela da sociedade, nos seus trancos e barrancos (outros não), conseguem mesmo assustados, sobreviver de suas reservas ou trabalhos feitos de maneira remota para que possamos tornar este isolamento possível. Há um imenso grupo que está impossibilitado, de aderir as mesmas praticas com o mesmo empenho.

Seria de imensa hipocrisia cogitar que a palavra “impossibilitado” não pudesse ser usada, sem levar em conta o sistema e o discurso que rodea nosso cenário social. Falar para este sujeito, que ele precisa se resguardar, é faze-lo escolher entre duas perdas crucias, e aí que se levanta minha questão: a força do sistema que vivemos, a ponto das questões econômicas prevalecerem sobre a vida das pessoas.

Não é apenas a resistência diante a doença e a morte (o que por si só traz infinita complexidade), mas desse corpo que pode padecer em troca do que pode produzir e receber.
Estes talvez, colham uma consequência de uma fenda que possa se instaurar no decorrer do tempo, mas para que isso ocorra, aqueles que estão no privilégio de se manterem resguardados, precisam se voltar para este outro grupo. Ou seja, é apenas com a empatia, com o reconhecimento de um outro, com o padecimento pelo sofrimento do outro, que a separação deste sistema conseguirá se tornar ato. E este isolamento está sendo realizado justamente com este intuito: “proteja a si e ao outro” – “proteja-se para proteger o outro”.

Quando me refiro ao sistema, e é nele que quero chegar, recorro a Lacan e ao discurso do capitalista.



No seu Seminário 7, ele diz: “há no início outra coisa além de seu valor de uso – há sua utilização de gozo”.
O que o discurso do capital aplica, é que sempre haverá um objeto capaz de tamponar uma falta, um objeto futuro capaz de total satisfação, a realização total do desejo, e até que o encontre, deve permanecer realizando substituições. E as substituições ocorrem justamente pelo fato de que objeto nenhum dá conta de tal exigência. Apontando assim, para sua falha.
O carro do ano, celular perfeito, as roupas da moda...

De fato, o objeto consegue temporariamente nos distrair de uma falta. Porém, o que tal discurso alimenta é que um Outro está com este objeto e está à venda.

Não é nada incomum encontrar sujeitos que compram compulsivamente, acumulam coisas em suas casas, consomem demais... Como já apontava Freud: “todo excesso esconde uma falta”

Recentemente, assistindo o filme “O Poço”, a conduta dos personagens me fez criar um link com o que estou tentando dizer. As pessoas que estavam no “poço” não podiam se voltar para os que estavam abaixo e os que estavam acima não deviam ser incomodadas. “A elite não olha para baixo”, pois olhar para baixo é olhar para a falta, lembrando que a castração é a castração do Outro. Se deparar com a pobreza, é se deparar que a falta existe e que se falta para ele, para mim não se torna impossível.

No momento em que a população precisa se resguardar, cria-se uma fenda. Como se a engrenagem que já estávamos acostumados, travasse. Somos todos aconselhados a voltarmos para as nossas casas, para nosso drama familiar, a ver o que por muitas vezes, o trabalho nos distraia.

Muitos continuam lotando os ônibus, os trens e metrôs, pois muitos se depararam com a falta constantemente e ficam entre a cruz e a espada, um sofrimento por outro, perder ou perder. Pois este sistema que se alimenta justamente da falta, precisa atuar. E se torna imperativo ao ponto, do corpo, da saúde, da vida, estarem para depois daquilo que esse sujeito tem a produzir.

O povo, o pobre, sempre serviu como massa de estratégia para planos de poder em toda a história. Desde o cidadão que acorda de madrugada, se espreme no transporte para ganhar miseravelmente, ao soldado que morre em batalha. Não só como plano de poder, mas também como afirmação de poder, como observamos nos movimentos contra lgbt+, negros...

Esta engrenagem que consome nossos corpos, mas ao mesmo tempo oferece um sentido a ser seguido, pode ser um sintoma em si só, pois é fruto da civilização. Mas não é tão simples assim, pois vamos desde o quando ele se faz imperativo enquanto discurso, antecedendo o próprio sujeito, até a Servidão Voluntária, proposta por Étienne de La Boétie.
Toda ruptura pode fazer surtir algo novo, e talvez na possibilidade de uma interrupção nisto que já estava tão natural em nosso cotidiano, se “desnaturalize”. Algo da realidade bate na porta, algo que aponta para a realidade do corpo, para a saúde, o outro, a morte, o indizível, a vida.


Boétie. Discurso da Servidão Voluntária (1576).

Freud. (1913). Totem e tabu. Obras completas, ESB, v. XIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

Freud, S. (1915/1974). Os instintos e suas vicissitudes. Obras completas, ESB, v. XIV. Rio de Janeiro: Imago.

Freud. (1929). O mal-estar na civilização. Obras completas, ESB, v. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

Lacan, J. (1969-1970). Seminário 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992

Lacan, J. (1959-1960/1988). O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

sexta-feira, 3 de abril de 2020

"O quereres" e o desejo na Psicanálise


“O QUERERES”
O desejo e a falta através da canção




“Eu queria querer-te amar o amor
Construir-nos dulcíssima prisão
Encontrar a mais justa adequação
Tudo métrica e rima e nunca dor
Mas a vida é real e de viés
E vê só que cilada o amor me armou
Eu te quero (e não queres) como sou
Não te quero (e não queres) como és



Retorno a este trabalho que desenvolvi no decorrer de minha especialização, onde lanço mão de uma das minhas canções favoritas, enquanto instrumento para expressar através da arte, o conceito do desejo para a psicanálise.

Esta canção, que foi escrita em 1984 por Caetano, utiliza da antítese como sua principal característica. Onde quer um, sou outro, quando sou, não o queres. Apontando para a impossibilidade da plena satisfação, na lacuna entre o sujeito e o outro, fadado a deparar-se com sua incompletude e com a daquele que na canção o deseja.

O sujeito, sempre dividido, por ser sujeito, para ser um sujeito.

Luciano Elia, em O Conceito de Sujeito, menciona a canção, dizendo que: “traduz magnificamente a concepção psicanalítica do desejo, que impede “a mais justa adequação, tudo métrica, rima e nunca dor””.

Ressaltando que o $ não nasce ou se desenvolve, mas se constitui, já que para tornar-se humano, precisa alienar-se ao Outro, enquanto ser pulsional e não do instinto. E seria então, neste encontro que um outro ocupa lugar do Outro, “o tesouro dos significantes”. É neste encontro com a linguagem que o pretendente a sujeito se depara com a sua primeira e fundamental divisão, a da linguagem. E para tornar-se sujeito, precisa perder, pois na luta entre a morte e a vida, “a bolsa ou a vida”, o ser e o sentido, escolhe o sentido e perde o ser.

Retornando ao desejo, volto-me a outro momento: a separação, que aponta que o Outro também é faltante. Este Outro que advém de um outro, que vem a ocupar este lugar. E é diante deste Outro barrado que se revela a perda do objeto.

"A separação supõe uma vontade de sair, uma vontade de saber o que se é para além daquilo que o Outro possa dizer, para além daquilo inscrito no Outro” (Soler, 1997, p. 65).

É a partir da separação que possibilita uma diferenciação entre o sujeito inconsciente e o Eu.
Já que o objeto falta, o sujeito pode tornar-se desejante – logo: o desejo só existe na falta. Saciado, permaneceria inerte, sem movimento, sem demanda. É então diante da falta do objeto que se constroem as vias da fantasia.

O desejo sempre nasce da frustração na sua relação na busca com uma primeira satisfação que não será revivida, estabelecendo então um jogo de demanda entre desejo e falta. Lembrando o matema da fantasia de Lacan: $<>a.

Quinet, quando trabalha “o desejo do Outro”, ressalta o aforismo de Lacan: o desejo do homem é desejo do Outro, retomando as teses Heglianas onde “ a palavra é o assassinato da coisa”, sendo assim, para que o desejo se constitua, ele precisa incidir sobre outro desejo. Sendo o desejo humano: desejo de desejo. Na busca de que seu desejo seja reconhecido pelo Outro, como se fosse seu. E é nesta relação que surge o “Che vuoi?”- “O que queres? O que queres de mim?”.

Freud nos ensina um desejo sempre conflituoso, por suas origens infantis e objetos proibidos, provocando assim a angústia. E é na busca por um objeto que cumpra esta missão, de completar uma lacuna deixada, que o sujeito caminha. Numa saga onde não se diz tudo, não há um todo, pura reciprocidade, um só. E a canção nos lembra do que há de árduo no desejo – a falta.

Ah! Bruta flor do querer
Ah! Bruta flor, bruta flor...



SOUZA, Vanuza A. Barcellos. 2020.

Referências


QUINET, A. (1991). As 4+1 Condições da Análise. Rio de Janeiro: Zahar.
QUINET, A. (2000). A descoberta do Inconsciente. Rio de Janeiro: Zahar.
PISETTA, Maria Angélica Mello; BESSET, Vera Lopes. Psicologia em Estudo, Maringá,  v.  16,  n. 2, p. 317-324, abr./jun. 2011
FREUD, S. (1914-1916). Introdução ao Narcisismo, ensaios de Metapsicologia e Outros Textos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
________. Além do princípio de prazer [1920-1922]. In: Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
________. (1915) Os Instintos (as pulsões) e seus Destinos.

________. (1915) O Inconsciente.
FERNANDES, Nohad Mouhanna. (2006). Análise linguístico-discursiva da canção “O quereres”, de Caetano Veloso. v. 2, n. 4 – jan./jun.
LACAN, J. Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise. In. O Seminário, livro 11. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1988(1964).