Antes de iniciar produzindo algo que se refira a qualquer
tipo de “consequência positiva” num isolamento social, preciso me localizar no
meu discurso.
E é imprescindível um discurso político. Político, suscitando a politeía,
do antigo Grego que indicava todos os procedimentos "relativos a Pólis – a
sociedade, comunidade... Como em A República: “O homem é, naturalmente um
animal político” - Aristóteles.
A concepção aristotélica traz o sujeito enquanto político
desde a sua relação parental, onde o “pátrio poder” se exerce sobre os filhos e
assim por diante nos outros contatos no mundo.
O sujeito para ser alguém, para ser um, precisa enfrentar
suas perdas, e as perdas são por muitas vezes consequências da lei. Ou seja, há
um outro, um Outro.
Retornando ao isolamento e a necessidade de uma fala que
pontue não apenas uma questão, mas que se destaque de outras para que possa se
validar, preciso separar as mazelas deste período.
Enquanto digitava este parágrafo, me ocorreu um pensamento:
é justamente por esta diferença que a fenda que quero chegar, se faz possível. Enfim,
continuemos.
Enquanto uma parcela da sociedade, nos seus trancos e
barrancos (outros não), conseguem mesmo assustados, sobreviver de suas reservas
ou trabalhos feitos de maneira remota para que possamos tornar este isolamento
possível. Há um imenso grupo que está impossibilitado, de aderir as mesmas
praticas com o mesmo empenho.
Seria de imensa hipocrisia cogitar que a palavra “impossibilitado”
não pudesse ser usada, sem levar em conta o sistema e o discurso que rodea
nosso cenário social. Falar para este sujeito, que ele precisa se resguardar, é
faze-lo escolher entre duas perdas crucias, e aí que se levanta minha questão:
a força do sistema que vivemos, a ponto das questões econômicas prevalecerem
sobre a vida das pessoas.
Não é apenas a resistência diante a doença e a morte (o que
por si só traz infinita complexidade), mas desse corpo que pode padecer em
troca do que pode produzir e receber.
Estes talvez, colham uma consequência de uma fenda que possa
se instaurar no decorrer do tempo, mas para que isso ocorra, aqueles que estão no
privilégio de se manterem resguardados, precisam se voltar para este outro
grupo. Ou seja, é apenas com a empatia, com o reconhecimento de um outro, com o
padecimento pelo sofrimento do outro, que a separação deste sistema conseguirá
se tornar ato. E este isolamento está sendo realizado justamente com este intuito:
“proteja a si e ao outro” – “proteja-se para proteger o outro”.
Quando me refiro ao sistema, e é nele que quero chegar,
recorro a Lacan e ao discurso do capitalista.
No seu Seminário 7, ele diz: “há no início outra coisa além
de seu valor de uso – há sua utilização de gozo”.
O que o discurso do capital aplica, é que sempre haverá um
objeto capaz de tamponar uma falta, um objeto futuro capaz de total satisfação,
a realização total do desejo, e até que o encontre, deve permanecer realizando substituições.
E as substituições ocorrem justamente pelo fato de que objeto nenhum dá conta
de tal exigência. Apontando assim, para sua falha.
O carro do ano, celular perfeito, as roupas da moda...
De fato, o objeto consegue temporariamente nos distrair de
uma falta. Porém, o que tal discurso alimenta é que um Outro está com este objeto
e está à venda.
Não é nada incomum encontrar sujeitos que compram
compulsivamente, acumulam coisas em suas casas, consomem demais... Como já
apontava Freud: “todo excesso esconde uma falta”
Recentemente, assistindo o filme “O Poço”, a conduta dos
personagens me fez criar um link com o que estou tentando dizer. As pessoas que
estavam no “poço” não podiam se voltar para os que estavam abaixo e os que
estavam acima não deviam ser incomodadas. “A elite não olha para baixo”, pois
olhar para baixo é olhar para a falta, lembrando que a castração é a castração
do Outro. Se deparar com a pobreza, é se deparar que a falta existe e que se
falta para ele, para mim não se torna impossível.
No momento em que a população precisa se resguardar, cria-se
uma fenda. Como se a engrenagem que já estávamos acostumados, travasse. Somos todos
aconselhados a voltarmos para as nossas casas, para nosso drama familiar, a ver
o que por muitas vezes, o trabalho nos distraia.
Muitos continuam lotando os ônibus, os trens e metrôs, pois
muitos se depararam com a falta constantemente e ficam entre a cruz e a espada,
um sofrimento por outro, perder ou perder. Pois este sistema que se alimenta
justamente da falta, precisa atuar. E se torna imperativo ao ponto, do corpo,
da saúde, da vida, estarem para depois daquilo que esse sujeito tem a produzir.
O povo, o pobre, sempre serviu como massa de estratégia para
planos de poder em toda a história. Desde o cidadão que acorda de madrugada, se
espreme no transporte para ganhar miseravelmente, ao soldado que morre em
batalha. Não só como plano de poder, mas também como afirmação de poder, como
observamos nos movimentos contra lgbt+, negros...
Esta engrenagem que consome nossos corpos, mas ao mesmo
tempo oferece um sentido a ser seguido, pode ser um sintoma em si só, pois é
fruto da civilização. Mas não é tão simples assim, pois vamos desde o quando
ele se faz imperativo enquanto discurso, antecedendo o próprio sujeito, até a
Servidão Voluntária, proposta por Étienne de
La Boétie.
Toda ruptura
pode fazer surtir algo novo, e talvez na possibilidade de uma interrupção nisto
que já estava tão natural em nosso cotidiano, se “desnaturalize”. Algo da
realidade bate na porta, algo que aponta para a realidade do corpo, para a
saúde, o outro, a morte, o indizível, a vida.
Boétie. Discurso da Servidão Voluntária (1576).
Freud. (1913). Totem e tabu.
Obras completas, ESB,
v. XIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
Freud, S. (1915/1974). Os
instintos e suas vicissitudes. Obras completas, ESB, v. XIV. Rio de Janeiro:
Imago.
Freud. (1929). O mal-estar
na civilização. Obras completas, ESB, v. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
Lacan, J. (1969-1970). Seminário 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992
Lacan, J.
(1959-1960/1988). O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor.